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O Dia em Que Gal Virou Fa-Tal

  • Foto do escritor: Maria Rita
    Maria Rita
  • 5 de mai.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 6 de mai.

Montado em 1971, Fa-Tal – Gal a Todo Vapor consolidou uma virada na trajetória de Gal Costa, reunindo elementos visuais e sonoros que contribuíram para redefinir os caminhos da música popular brasileira em um contexto de censura e experimentação.


Por Maria Rita


Capa do álbum FA-TAL Gal A Todo Vapor --- Foto: Arte Luciano Figueiredo/Oscar Ramos
Capa do álbum FA-TAL Gal A Todo Vapor --- Foto: Arte Luciano Figueiredo/Oscar Ramos

O espetáculo Fa-Tal – Gal a Todo Vapor foi concebido como uma explosão estética, musical e comportamental que mudaria a imagem de Gal Costa diante do Brasil. Encenado em 1971, no Teatro Tereza Rachel, o show foi moldado entre ensaios intensos, escolhas ousadas de repertório e um figurino que beirava o escândalo. Ela surgia como uma intérprete elétrica, sensual e livre. Nos bastidores, histórias, tensão e brilho ajudam a entender como aquela performance se tornou um divisor de águas na Música Popular Brasileira (MPB).

Concebido pela cantora em colaboração com o poeta Waly Salomão, responsável pela direção artística, e o produtor Paulinho Lima, o show foi uma resposta estética e política à censura vigente. A ambientação visual, criada por Luciano Figueiredo e Oscar Ramos, incorporava palavras-destaque como "FA-TAL" e "VIOLETO", extraídas do livro de Salomão, com a finalidade de criar uma fusão entre poesia e performance


LP Estereofônico --- Foto: Reprodução/Musicaria Brasil
LP Estereofônico --- Foto: Reprodução/Musicaria Brasil

O disco resultante do evento incorporou em sua estrutura artística as imperfeições e os imprevistos do palco, traduzindo em som a tensão e a liberdade dos tempos. Dividido em dois atos distintos, o show oscilava entre momentos intimistas e de explosão elétrica. Na primeira metade, acústica, Gal Costa surgia contida, grave e próxima ao tom falado, acompanhando-se ao violão em sambas de décadas passadas e baladas contemporâneas como “Coração Vagabundo” e “Sua Estupidez”. 

A afinação e a dicção remetiam ao legado de João Gilberto, especialmente pelo uso do “scat-singing”. Canções como “Falsa Baiana” e “Antonico” não apenas dialogavam com a tradição musical brasileira, mas também funcionavam como recados cifrados aos amigos exilados Caetano Veloso e Gilberto Gil. A canção folclórica “Fruta Gogóia”, repetida em duas versões contrastantes – uma vigorosa e a cappella, outra suave com violão – pontuava simbolicamente essa dualidade da performance. Curiosamente, na edição original em LP, as partes do show foram invertidas, o que rompeu com a dramaturgia pensada por Salomão, só retomada posteriormente na versão em CD.

A segunda metade do espetáculo assumia uma pegada mais estridente, elétrica e influenciada pelo rock psicodélico, blues e jazz. Gal era então acompanhada por uma banda formada por Lanny Gordin, responsável também pela direção musical e pelos arranjos, além de Novelli no baixo, Baixinho na percussão e Jorginho Gomes na bateria, muitos deles ligados ao grupo Novos Baianos. Nessa parte, ela interpretava composições de novos autores como Luiz Melodia, Jards Macalé e Moraes Moreira, com destaque para a visceral “Vapor Barato”. Escrita por Salomão na prisão e musicada por Macalé, a faixa se tornaria um hino da contracultura, ganhando força conforme a banda entrava e cantora elevava sua voz a um grito de resistência. 

O espírito libertário atravessa também faixas como “Dê um Rolê”, que traduzia o ideário hippie de amor livre e recusa às amarras ideológicas. Entre explosões sonoras, momentos de silêncio político: “Maria Bethânia” é ressignificado como metáforas da repressão e da saudade em tempos de censura. Já nos versos finais de “Luz do Sol”, Gal encerra o show com a promessa de renovação, fazendo do palco um espaço de denúncia, celebração e utopia: “Quero ver de novo a luz do sol”.

Em depoimento exclusivo, o baterista Jorginho Gomes relembrou sua participação no espetáculo. "Fizemos uns três shows no Teatro Tereza Rachel, sempre aos fins de semana, e o local ficava lotado", contou. Segundo ele, os ensaios aconteciam nas dependências da gravadora, e, após as apresentações com Gal, ele ainda seguia para tocar com os Novos Baianos, em uma espécie de “dobradinha” musical. Jorginho destaca o perfeccionismo e a força da cantora como artista: "Ela sempre teve uma personalidade incrível no palco e na concepção do show, além de uma voz impecável e uma comunicação muito direta com o público." Os arranjos, segundo ele, eram construídos coletivamente pela banda, com contribuições da própria intérprete. “Tive muita sorte de realizar aquele trabalho com ela e depois, anos mais tarde, com os Doces Bárbaros, quando se juntaram novamente”, afirmou.

Assim, a dimensão simbólica de Fa-Tal – Gal a Todo Vapor segue preservada por admiradores dedicados, como Carlos Almeida e Matheus Marques, responsáveis pela página @galtodas no Instagram, que conta com mais de 20 mil seguidores e é reconhecida pela própria equipe oficial da Gal. Juntos, eles mantêm um vasto acervo digital com fotografias, registros audiovisuais, gravações sonoras e recortes de imprensa que percorrem as diversas fases da trajetória artística dela. Em comentários para esta reportagem, Matheus destacou o caráter político e estético do espetáculo, classificando-o como um manifesto performático forjado sob a repressão da ditadura militar. Em sua análise, o show dirigido por Waly Salomão transcendeu os limites do entretenimento ao unir tradição popular e vanguarda experimental em um gesto de resistência. A mesma energia libertária que ocupava o palco, segundo ele, também se irradiava pelas dunas artificiais de Ipanema — as célebres “dunas da Gal” —, ponto de encontro de artistas, jovens e intelectuais no início da década de 1970, onde se vivia, à beira-mar, o ideário do desbunde e da contracultura.


Anúncio do show --- Foto: Reprodução/Jornal Correio da Manhâ
Anúncio do show --- Foto: Reprodução/Jornal Correio da Manhâ

Em palavras particulares à reportagem, o jornalista Mauro Ferreira, colunista especializado em música brasileira no G1, sublinha a importância histórica de Fa-Tal – Gal a Todo Vapor como um marco estético e político na trajetória de Gal Costa. Segundo o escritor, o disco é mais do que um simples registro de show: é a materialização de um momento de resistência cultural em plena ditadura militar. Ferreira observa que, embora a gravação não seja tecnicamente primorosa, ela consegue captar de maneira precisa a atmosfera de rebeldia, liberdade e enfrentamento que dominava a cena musical mais ousada da época.

Para ele, Gal não usava apenas a voz, mas também o corpo como instrumento de provocação e enfrentamento, rompendo com expectativas conservadoras, especialmente em relação ao comportamento feminino no palco. Por esses motivos, Mauro afirma que Fa-Tal é um dos discos mais cultuados dela e figura com frequência entre os mais relevantes de sua discografia.

Além da premissa de espetáculo musical, o show sintetizou mudanças de linguagem, comportamento e posicionamento político em pleno período de ditadura militar. A junção de repertório não padronizado, direção cênica experimental e presença de palco marcante consolidou uma nova imagem para a cantora. Ainda hoje, o trabalho é lembrado por sua contribuição à renovação estética da MPB e por refletir um período de tensão e reinvenção no país.

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