Artigo - Comunicação durante a Ditadura Militar brasileira: Controle, resistência e a MPB como contra-injeção ideológica
- Ester Moraes e Victor Bringel
- 4 de mai.
- 8 min de leitura

Por Ester Moraes, Samantha Alves e Victor Bringel
A TEORIA DA AGULHA HIPODÉRMICA E A
RESUMO
Este artigo propõe uma análise aprofundada da comunicação de massa durante a Ditadura Militar brasileira (1964–1985), a partir da perspectiva da Teoria da Agulha Hipodérmica. Investiga-se como o regime militar utilizou os meios de comunicação para promover um discurso hegemônico e silenciar opositores, operando mecanismos de censura e propaganda. Em contraponto, analisa-se o papel da Música Popular Brasileira (MPB) como forma de resistência simbólica e contra-informação, constituindo-se como uma “contra-injeção” ideológica. A análise recorre a fundamentos teóricos de McQuail, Martín-Barbero, Freire, entre outros, destacando como a cultura se configurou como espaço de disputas simbólicas, tensionando a lógica autoritária do regime. Assim, evidencia-se que mesmo em contextos de forte repressão, a comunicação e a arte são campos abertos à resistência e à reinterpretação do real.
Palavras-chave: Comunicação de massa; Ditadura militar; MPB; Resistência cultural; Teoria da Agulha Hipodérmica.
1. INTRODUÇÃO: COMUNICAÇÃO E AUTORITARISMO
A Teoria da Agulha Hipodérmica, também conhecida como teoria da bala mágica, consolidou-se nas primeiras décadas do século XX como uma das primeiras tentativas de compreender o poder da mídia sobre o público. Enraizada em um contexto de guerras mundiais e crescimento dos regimes totalitários, essa teoria postulava que os meios de comunicação seriam capazes de influenciar diretamente o comportamento das massas, sem considerar mediações sociais ou culturais. Nesse modelo, o receptor seria passivo, recebendo as mensagens midiáticas como se fossem “injeções” ideológicas de efeitos homogêneos e imediatos (McQUAIL, 2010).
Tal perspectiva, embora simplificadora, mostrou-se funcional para descrever ambientes políticos marcados pelo autoritarismo e pela centralização do poder informacional. No caso da Ditadura Militar brasileira, a tentativa de controlar os meios de comunicação ilustra com clareza esse paradigma. A censura institucionalizada, a manipulação da imprensa e a propaganda oficial construíram um sistema comunicacional que buscava moldar a opinião pública e eliminar qualquer possibilidade de dissenso. Como destaca Napolitano (2001), o Estado visava “administrar o fluxo de informações para eliminar qualquer possibilidade de questionamento coletivo da ordem vigente”.
A teoria da agulha hipodérmica, embora criticada por abordagens posteriores como a Teoria dos Dois Passos (KATZ; LAZARSFELD, 1955), pode ser reabilitada como lente analítica para contextos nos quais o público não tem autonomia efetiva de recepção e interpretação. Ou seja, mesmo que teoricamente superada, sua validade empírica se mantém em regimes repressivos, como o brasileiro entre 1964 e 1985. O controle simbólico pretendido pelo regime brasileiro revela-se uma tentativa explícita de aplicar, ainda que não conscientemente, esse modelo comunicacional.
Neste artigo, propõe-se discutir esse modelo em relação à censura e à propaganda da ditadura, mas também avançar para além da passividade receptiva, mostrando como setores da sociedade, em especial os artistas da MPB, resistiram ativamente a essa tentativa de colonização do imaginário coletivo. Ao se valerem da arte como forma de subversão simbólica, esses agentes culturais realizaram uma espécie de “contra-injeção” ideológica, na qual a música popular operava como canal alternativo de comunicação e resistência.
2. A TEORIA DA AGULHA HIPODÉRMICA E O CONTROLE INFORMACIONAL NA DITADURA
A Ditadura Militar brasileira instituiu um sistema rígido de vigilância e controle dos meios de comunicação. A atuação de órgãos como o Serviço Nacional de Informações (SNI) e a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) foi decisiva para criar um aparato institucional voltado à repressão das liberdades comunicacionais. A imprensa, o rádio e posteriormente a televisão foram monitorados, com jornalistas perseguidos e veículos noticiosos submetidos a restrições severas. A censura não apenas eliminava conteúdos considerados subversivos, mas impunha uma moldura narrativa que visava legitimar o regime perante a opinião pública (SODRÉ, 1981).
Essa lógica se aproxima da concepção da comunicação enquanto processo unilateral de influência, como descrito na Teoria da Agulha Hipodérmica. Denis McQuail (2010) destaca que esse modelo concebe a comunicação como um fluxo de mensagens que penetra diretamente no receptor, sem que haja espaços para contestação. A adesão forçada a esse modelo foi evidenciada no Brasil pela difusão de slogans como “Brasil: ame-o ou deixe-o”, bem como pela veiculação de reportagens ufanistas em telejornais controlados. O objetivo era simples: consolidar a imagem de um país em progresso, coeso e seguro, sob a tutela das Forças Armadas.
Contudo, a pretensão de homogeneizar o pensamento social encontrou limites na própria complexidade das relações sociais e na resistência cultural que emergiu de diferentes segmentos da sociedade civil. A tentativa de instaurar uma hegemonia ideológica por meio da mídia tradicional foi parcialmente bem-sucedida, mas incapaz de impedir a emergência de discursos alternativos, sobretudo aqueles provenientes da cultura popular urbana. A repressão das vozes divergentes não impediu que se formassem circuitos paralelos de comunicação e produção simbólica.
Ainda assim, a análise do regime sob a lente da teoria da agulha hipodérmica permite compreender sua tentativa de configurar um sistema de controle total da informação, baseado em um modelo de receptor passivo. Isso revela não apenas uma concepção autoritária da comunicação, mas também a crença no poder absoluto da propaganda e na possibilidade de manipular a opinião pública sem resistências. O fracasso parcial dessa empreitada, no entanto, abre espaço para a reflexão sobre as práticas culturais de resistência, como a que se deu por meio da MPB.
3. A MPB COMO CONTRA-INJEÇÃO IDEOLÓGICA: ESTÉTICA, CULTURA E SUBVERSÃO
A emergência da Música Popular Brasileira como veículo de resistência durante a Ditadura Militar deve ser compreendida no contexto da repressão cultural e da busca por espaços de expressão autônoma. Artistas como Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Elis Regina e Milton Nascimento utilizaram a música como canal de crítica social, construindo narrativas que desafiavam a versão oficial da realidade imposta pelo regime. Essa forma de atuação, embora simbólica, teve forte impacto político, pois contribuiu para manter viva a memória coletiva e estimular a formação de consciências críticas.
A noção de “contra-injeção” ideológica utilizada neste trabalho serve como contraponto à metáfora da agulha hipodérmica. Se o regime militar procurava “injetar” passividade e conformismo por meio da mídia oficial, a MPB atuava como antídoto cultural, veiculando mensagens codificadas que rompiam com a lógica dominante. Canções como Apesar de Você (1970), de Chico Buarque, são exemplos emblemáticos de como a arte soube contornar a censura e produzir sentidos subversivos. A recepção dessas músicas envolvia um jogo interpretativo, no qual o público precisava “decifrar” as mensagens ocultas, exercitando, assim, uma forma ativa de leitura.
Jesús Martín-Barbero (1987) contribui para essa análise ao destacar que os processos comunicacionais devem ser compreendidos pelas mediações culturais e sociais. Segundo o autor, a comunicação não se dá de forma linear e direta, mas envolve práticas simbólicas e interações complexas que reconfiguram o sentido das mensagens. A música, nesse contexto, funcionou como um processo de mediação: entre o artista e o público, entre o discurso oficial e o contra-discurso, entre a repressão e a resistência.
É importante notar que a resistência simbólica da MPB não se restringia às letras das músicas. Ela se manifestava também nas performances, nos festivais, nos álbuns conceituais e nos modos de articulação entre estética e política. O engajamento artístico se traduziu em uma linguagem própria, dotada de ambiguidade e densidade poética, que desafiava o controle totalitário da comunicação. Essa complexidade reforça a ideia de que a comunicação cultural é sempre um campo de disputas, e que mesmo em cenários autoritários, a criatividade humana encontra formas de se expressar.
4. REPRESSÃO, RISCO E A LUTA SIMBÓLICA NA MÚSICA
A repressão à produção artística durante a ditadura evidencia a percepção do regime quanto ao potencial subversivo da cultura. Muitos artistas foram perseguidos, exilados, censurados ou silenciados. Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos em 1968 e exilados em Londres; Chico Buarque usava pseudônimos para burlar a censura; Elis Regina sofreu retaliações por seu posicionamento crítico em festivais. Tais episódios demonstram que a arte era vista como ameaça concreta à estabilidade do regime.
Apesar dos riscos, os artistas engajados continuaram a produzir. Esse engajamento não era apenas político no sentido institucional, mas existencial, como destaca Paulo Freire (1970). Para ele, a prática da liberdade envolve tomar consciência da realidade opressora e engajar-se na sua transformação. Nesse sentido, a produção musical da época se tornou veículo de educação política, promovendo o despertar da consciência crítica por meio de formas estéticas sensíveis e simbólicas.
A repressão, paradoxalmente, contribuiu para tornar mais sofisticadas as formas de resistência. Ao invés de discursos diretos e enunciativos, a música passou a operar por vias oblíquas, utilizando metáforas, ironias e ambiguidades que escapavam ao radar dos censores. Esse jogo de sentidos, longe de ser um obstáculo, tornou-se um componente fundamental da expressividade artística da MPB, enriquecendo seu valor estético e político. A luta simbólica ganhou força justamente pela necessidade de reinvenção constante.
A história da música brasileira durante a ditadura é, portanto, também a história de uma pedagogia crítica e coletiva. Como um contra espaço discursivo, a MPB articulou práticas de resistência que ajudaram a manter viva a noção de liberdade e a esperança de transformação. Ao subverter a lógica da agulha hipodérmica, os artistas não apenas sobreviveram à censura, mas criaram uma obra que permanece como legado cultural e político da resistência à opressão.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A POTÊNCIA RESISTENTE DA CULTURA
A aplicação da metáfora da agulha hipodérmica ao contexto da Ditadura Militar revela-se útil para compreender a estrutura de dominação simbólica que o regime procurou instituir. A censura, o controle informacional e a propaganda oficial compuseram um sistema comunicacional autoritário, centrado na ideia de um público passivo e manipulável. Nesse sentido, o modelo de comunicação unidirecional e vertical se manifestou de forma concreta e sistemática.
Entretanto, o caso da MPB evidencia as limitações desse modelo teórico. A música funcionou como instância de resistência simbólica e política, demonstrando que a comunicação é sempre atravessada por mediações sociais e culturais. A noção de “contra-injeção” ideológica aqui defendida aponta para o caráter ativo e contestador da arte, capaz de romper com os discursos hegemônicos e reconfigurar o campo da recepção. A cultura, portanto, emerge como lugar de disputas e possibilidade de emancipação.
Stuart Hall (2003) reforça essa perspectiva ao afirmar que os processos culturais são campos de luta pela significação. A produção musical crítica da ditadura operou dentro dessa lógica, produzindo contra narrativas que confrontavam o projeto autoritário. A arte, longe de ser mera representação, tornou-se espaço de ação política e de formação de subjetividades resistentes.
Em conclusão, mesmo em regimes marcados pela tentativa de totalizar o controle comunicacional, a cultura se revela como campo de liberdade. A MPB demonstrou que, em meio à repressão, é possível construir alternativas simbólicas, preservar a memória da liberdade e cultivar a esperança. Assim, reafirma-se a potência da arte como prática emancipadora, capaz de resistir, reinventar e transformar realidades opressoras.
REFERÊNCIAS
CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil: da era Vargas ao século XXI. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2013.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
KATZ, Elihu; LAZARSFELD, Paul F. Personal Influence: The Part Played by People in the Flow of Mass Communications. Glencoe: Free Press, 1955.
McQUAIL, Denis. Teoria da comunicação de massa: uma introdução. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1987.
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume, 2001.
SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear. Petrópolis: Vozes, 1988.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1981.
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