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Entre poeira e paixão: Os sebos como redutos dos colecionadores de vinil

  • Ester Moraes e Victor Bringel
  • 5 de mai.
  • 9 min de leitura
Em meio à era digital e afetividade, discos de vinil mantêm vivos nas prateleiras dos sebos 

Por Ester Moraes e Victor Bringel


Sebo Maravilha --- Foto: Victor Bringel
Sebo Maravilha --- Foto: Victor Bringel

O disco de vinil, com sua fisicalidade, suas capas elaboradas e encartes ricos em informações técnicas e artísticas, oferece uma experiência de escuta que vai além do áudio. O ritual de procurar, manusear e tocar um vinil é parte essencial da cultura dos colecionadores e os sebos são, por excelência, os territórios do garimpo.

Diferentemente das lojas especializadas que vendem edições novas ou remasterizadas, os sebos oferecem catálogos imprevisíveis e heterogêneos. Não há garantias de encontrar um título específico, mas essa imprevisibilidade é justamente o que alimenta a prática do colecionismo. Para muitos, trata-se de descobrir relíquias esquecidas, primeiras edições, prensagens raras ou exemplares com dedicatórias e marcas do tempo. 

O vinil nunca desapareceu completamente, mas por um bom tempo foi tratado como uma relíquia obsoleta, substituída pelo CD, pelo MP3 e, mais recentemente, pelas plataformas digitais. Em meio à digitalização acelerada da música, os discos de vinil seguem girando, embalando não só melodias, mas memórias e afetos.


Guardião dos discos: Muito além da nostalgia

No interior de São Paulo, em Porto Ferreira, o empresário Miguel Bragioni Lima Coelho guarda mais do que apenas discos. Aos 41 anos, ele é curador de uma verdadeira arqueologia sonora: um acervo com centenas de exemplares de discos de 78 rotações, também chamados de discos de cera peças que contam a história da música brasileira de 1902 a 1964, com sons gravados em um tempo em que o erro não era permitido e a alma do país vibrava nas vozes de Francisco Alves, Carmen Miranda e nos sopros de Pixinguinha.

A trajetória de Miguel com os discos começou cedo. “Quando tinha uns cinco ou seis anos, peguei no pé da minha mãe para comprar um disquinho do Barão Vermelho”, lembra ele, fazendo referência ao compacto com a música Bete Balanço. A cena infantil com um toca-discos em casa se tornaria símbolo de uma paixão que ultrapassou décadas. Mas a guinada definitiva veio aos 11 anos, quando ganhou seus primeiros três discos de 78 rpm. “Ali, decidi que seria colecionador”, conta.

Mais do que acumular objetos, Miguel desenvolveu uma missão: reunir o maior número possível de discos brasileiros da chamada fase da cera, período em que as gravações eram feitas em discos de 78 rpm, antes da popularização do vinil. Calcula-se que, nesse período, cerca de 36 mil discos tenham sido produzidos no Brasil. Cada um desses exemplares é, para ele, uma peça histórica, um elo com o passado sonoro do país.

O cuidado com a coleção se estende à organização detalhada de sua discoteca: os discos de 78 rpm são classificados por nacionalidade, ordem alfabética e numeração das gravadoras; os LPs seguem uma lógica por gênero, nacionalidade e ordem alfabética; os compactos e discos de 10 polegadas também são separados entre nacional e internacional. A metodologia reflete não apenas apreço, mas um compromisso quase institucional: “Faço o que o Estado deveria fazer”, afirma.

Em tempos em que o consumo musical se dá por streaming e algoritmos, a prática de Miguel contraria a lógica do imediatismo. Ele não frequenta feiras, prefere os sebos, espaços que, para colecionadores, funcionam como verdadeiros templos da cultura esquecida. “Pesquiso na internet, mas possuo uma boa rede de contatos. Semanalmente, pessoas se comunicam comigo oferecendo lotes, discos, acervos”, relata.

Nos sebos, cada aquisição é uma descoberta: pode-se encontrar desde raridades de Taiguara e Johnny Rivers até gravações obscuras da era do rádio. Mas Miguel vai além do que está à venda, ele busca sentido. A preferência é por registros que ainda não possui, mas seu olhar vai além do Brasil. “Aprecio também música internacional do mundo ocidental, do mesmo período de cera”, afirma.

O colecionismo de Miguel não é movido por nostalgia pura, mas por crítica e consciência histórica. Para ele, o declínio da qualidade musical brasileira tem ligação direta com a lógica de mercado que se instaurou com o “jabá”, a prática de pagar para tocar nas rádios. “Depois disso, o repertório disponível despencou. A época de ouro da música popular brasileira é a década de 1930. Lá está toda a alma do país”, defende.

Ao mesmo tempo, ele observa um fenômeno curioso: o crescimento do interesse por discos raros ou obscuros, muitas vezes impulsionado mais pela ostentação do que pela apreciação. “Há quem compre o que não fez sucesso, só por ser raro, mesmo que seja ruim. É como se quisessem equilibrar o gosto atual que consideram um lixo, com o lixo do passado. Absurdo, mas coerente”, ironiza.


Um acervo que é patrimônio

A coleção de Miguel não tem um disco preferido, mas nomes incontornáveis: Francisco Alves, seu cantor favorito; Carmen Miranda, sua cantora de eleição; Pixinguinha, como símbolo da música instrumental e da sofisticação dos arranjos brasileiros. “Este trio gravou o Brasil durante meio século, com pouca influência externa e muita brasilidade”, resume.

O empresário sabe que sua paixão cobra um preço: “A cada aquisição, renuncio a um pouco do meu bem-estar. Afinal, poderia investir em outros bens”, admite. Mas o que ele constroi vai além do gosto pessoal. Seu acervo é parte viva da memória musical do país, reunido com rigor e afeto em uma casa onde o passado não apenas ecoa, ele canta.

Em 2023, o colecionador Miguel Bragioni Lima Coelho abriu as portas de seu acervo para a equipe do Balanço Geral, da Record TV. Em sua casa, em Porto Ferreira (SP), repousam milhares de discos raros, muitos deles de 78 rotações, os chamados "discos de cera” , que datam das primeiras décadas do século XX. Com mais de 150 mil discos, durante a reportagem, Miguel mostrou algumas dessas preciosidades e destacou o valor histórico da música impressa em vinil, dentre elas, gravações antigas de cantores como Francisco Alves e Carmen Miranda, muitos deles ainda em discos de goma-laca.


Vinil na Veia: O ritual do colecionador

A paixão de Ruy Barreto por discos de vinil não começou com o som nítido de um LP recém-saído da loja, mas sim com o chiado áspero de uma fita cassete. Ainda adolescente, nos corredores de uma escola do Rio de Janeiro, um colega lhe emprestou uma fita com dois lados bem distintos. De um lado, o disco homônimo do Black Sabbath lançado em 1970, do outro, uma gravação da mesma banda já nos anos 1980, com um vocalista diferente. Foi ali, entre o play e o stop daquele gravador, que Ruy se viu enredado pela intensidade do heavy metal.

Hoje, aos 47 anos, Ruy é professor de inglês e possui uma coleção que ultrapassa os mil discos. Lembra com precisão o primeiro vinil que adquiriu: No Sleep 'til Hammersmith, do Motörhead, comprado por cinco reais nos anos 1990, ainda no embalo do Plano Real. “Hoje, esse disco custa no mínimo 130 reais. E eu ainda tenho o meu”, diz com orgulho.

Rui não se considera um acumulador, mas um colecionador criterioso. “Sou completista de alguns artistas, mas não de todos. Se uma banda me perder depois de dois ou três álbuns, eu paro por ali. Não coleciono por volume, mas por afinidade”, explica. Sua organização é quase cartográfica: os discos são divididos por gênero, do thrash ao doom metal, e por origem geográfica, com classificações minuciosas que separam, por exemplo, o Reino Unido da Europa continental e o Leste Europeu da Escandinávia.

Para Ruy, o vinil não é apenas um suporte musical. É uma experiência sensorial. “A arte da capa é uma parte essencial. Você pega o disco, sente o cheiro, observa os detalhes, como se fosse possível voltar no tempo”, diz.

Mais do que um hábito ou hobby, colecionar vinis se tornou um modo de vida. “No começo, achei que um dia eu estaria satisfeito. Mas esse dia nunca chega. Já me conformei. Existe uma coisa fascinante na busca. Você entra num sebo, sem grandes expectativas, e de repente lá está ele: aquele disco que você procurava há anos, na sua frente, com o preço certo e em perfeito estado. É uma mistura de sorte, instinto e pura emoção”, resume.


“O Sebo é Tradição de Família”

Renner Beliato, de 37 anos, é proprietário do Sebo Maravilha, localizado em Uberlândia. A história do sebo é marcada por tradição familiar. Segundo Renner, tudo começou com um tio que fundou, em 1967, o primeiro sebo da família em Londrina (PR), chamado Sebo Capricho. Desde então, a iniciativa inspirou outros membros da família a abrirem suas próprias lojas em diversas partes do Brasil. Atualmente, são mais de 87 sebos ligados à família, cada um com seu nome e identidade própria. Em Ponta Grossa (PR), por exemplo, a unidade se chama Espaço Cultural, enquanto em Uberlândia leva o nome de Sebo Maravilha.


Acervo de vinis do Sebo Maravilha --- Foto: Ester Moraes
Acervo de vinis do Sebo Maravilha --- Foto: Ester Moraes

A loja em Uberlândia foi inaugurada em 2004, dois anos após a abertura da unidade em Ponta Grossa. De lá para cá, Renner afirma que a procura pelo sebo cresceu significativamente. Ele explica que os livros ainda são o carro-chefe, representando cerca de 70% das vendas. No entanto, a parte musical também tem seu espaço garantido, com destaque para vinis e CDs.

Essa ligação com a música e a leitura veio mais como uma herança familiar do que por escolha pessoal, segundo Renner. O espaço dedicado ao vinil, por exemplo, existe desde a fundação do sebo. Nos últimos anos, especialmente após a pandemia, o público jovem tem se mostrado mais interessado nos discos de vinil, o que ajudou a manter viva essa parte da loja.

Cerca de 80% dos LPs disponíveis no acervo são fornecidos pelos próprios clientes, que procuram o sebo para vender ou trocar seus discos. Apesar de receberem alguns títulos de outras cidades como São Paulo e Curitiba, a maior parte do acervo vem de Uberlândia mesmo. Renner aponta como principal desafio atual a dificuldade em encontrar bons materiais, já que muitos vinis acabam nas mãos de colecionadores, o que contribui para a valorização desses itens.

Para quem está começando a colecionar vinis, a dica de Renner é garimpar. Sebos, internet e feiras culturais são os melhores caminhos para encontrar boas oportunidades a preços justos. O Sebo Maravilha, inclusive, participa regularmente de feiras e eventos culturais na cidade.

Sobre o impacto da tecnologia, Renner comenta que, apesar do avanço do streaming e da digitalização, o sebo físico ainda mantém seu público fiel, principalmente na venda de livros usados. O mercado de livros novos foi mais afetado, já que os preços costumam ser mais altos. Por outro lado, a internet trouxe novas oportunidades: atualmente, cerca de 40% das vendas do Sebo Maravilha são feitas online.

Mesmo com as mudanças ao longo dos anos, Renner acredita que a essência do sebo permanece a mesma, um espaço de descoberta, cultura e tradição. “Sempre vai ter gente procurando esse tipo de experiência. Pode diminuir um pouco por causa da tecnologia, mas o público do físico nunca vai acabar”, afirma.


O Poder do Vinil na Memória de uma Geração

Lívia não se considera uma colecionadora de discos de vinil, mas guarda lembranças muito vivas desse formato que marcou sua infância. “Eu não coleciono, mas tenho boas memórias. Lembro muito de ver os discos em casa, mais do que ouvir, de fato”, conta, com um sorriso nostálgico. Para ela, o vinil era uma presença constante e marcante no ambiente familiar, mesmo antes de entender exatamente o que representava.

As capas dos discos, segundo Lívia, são as que mais permanecem na memória. “A gente estava até comentando aqui que as capas marcam demais. Era a nossa fonte principal de música. Ou a gente ouvia rádio, ou era o vinil mesmo”, relembra. Ela destaca que, naquela época, o acesso à música era limitado se comparado à realidade atual, com streaming e plataformas digitais. Por isso, cada disco tinha um peso maior, era quase como um objeto mágico.

Entrar em um sebo hoje, para ela, é como viajar no tempo. “É uma experiência de resgatar memórias que estavam adormecidas. Às vezes você olha uma capa e aquilo te leva direto pra uma cena da infância”, descreve. E é justamente esse aspecto visual que torna o vinil tão especial: o tamanho da capa, as imagens marcantes, o encarte... tudo isso ajudava a criar uma relação mais física e afetiva com a música.

“A gente acabou de comprar uma vitrola. Estamos começando a ver alguns discos pra levar, com esse desejo de colecionar.” -- relata Jean. --- Foto: Ester Moraes
“A gente acabou de comprar uma vitrola. Estamos começando a ver alguns discos pra levar, com esse desejo de colecionar.” -- relata Jean. --- Foto: Ester Moraes

Jean que também estava presente no Sebo lembra de um momento curioso que ilustra bem essa conexão emocional. “Esses dias peguei um disco da Sandra de Sá e falei: ‘Nossa, eu lembro que tinha medo dessa capa!’. Era uma imagem estranha pra mim quando criança.” Para ele, essa relação visual se perdeu um pouco com o streaming, que minimizou a importância da arte gráfica dos álbuns. “Hoje é tudo pequeno. A gente nem vê mais capa, nem clipe, nem nada.”

Apesar de não se considerar uma colecionadora formal, Lívia e Jean estão aos poucos retomando o contato com os discos. É um passo pequeno, mas carregado de sentimento, o início de um reencontro com a música em sua forma mais tátil e memorável.


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