O drible sonoro de Jorge Ben Jor
- Ester Moraes
- 5 de mai.
- 6 min de leitura
Por onde corre uma bola de futebol, corre também um pouco da alma brasileira
Por Ester Moraes
Se existe uma trilha sonora para o Brasil que canta, dança e vibra com uma bola nos pés, ela certamente tem a voz, o violão e o swing de Jorge Ben Jor. Nascido Jorge Duílio Lima Menezes, no Rio de Janeiro, ele nunca foi um craque dos gramados, mas soube, como poucos, transformar o campo de futebol em matéria-prima musical. Suas canções capturam não apenas o jogo em si, mas todo o imaginário afetivo que o envolve: a pelada de rua, o gol de placa, a ginga do atacante e o anonimato do zagueiro.
Desde os anos 1960, Jorge enxergou o futebol como um tema legítimo para a canção popular, algo pouco comum até então, mesmo em um país apaixonado por gols. E mais do que narrar lances ou enaltecer ídolos, ele revela o futebol como linguagem simbólica, um espelho das relações sociais e das contradições nacionais. Em sua música, o futebol não é só esporte: é religião popular, dança coletiva e crônica urbana.
Enquanto muitos compositores se limitavam a usar o futebol como alegoria ocasional, Jorge fez dele um eixo criativo. Com balanço, humor e uma poética singular, criou uma obra onde a bola rola ao lado do tamborim, onde o passe milimétrico é como um verso bem encaixado. Ao misturar ritmos afro-brasileiros com influências do soul, do rock e do funk, ele ampliou o campo. Seu futebol é universal, mas com sotaque carioca e alma suburbana.
Futebol como narrativa
Jorge Ben Jor entendeu, desde cedo, que o futebol carrega em si um poder narrativo imenso. Ele não é apenas um jogo, mas uma forma de contar histórias com heróis, vilões, tragédias e redenções. Em suas músicas, Jorge adota esse ponto de vista: trata o futebol como se trata de um romance, um samba-canção ou uma lenda popular. Ele não descreve só jogadas, compõe poesia lírica e emocional sobre o impacto que o futebol tem na vida cotidiana.
Essa abordagem já estava presente em seu disco de estreia, Samba Esquema Novo (1963), onde “Mas que Nada” se tornou um clássico instantâneo. A canção não fala diretamente de futebol, mas seu ritmo leve e sua levada descontraída evocam a atmosfera das peladas de fim de tarde, aquelas partidas despretensiosas entre vizinhos, onde o gramado é de terra batida e a bola de capotão se confunde com o tempo lento dos subúrbios.
Mesmo sem um apito ou uma trave, “Mas que Nada” já anunciava que Jorge enxergava o futebol como parte indissociável do modo de ser brasileiro. E, a partir dali, ele passaria a incluir o jogo em sua poética com cada vez mais nitidez, transformando os jogadores em personagens e os gols em momentos de revelação espiritual.
Fio Maravilha: O gol que virou lenda
A música “Fio Maravilha”, lançada em 1972, foi inspirada em um episódio real: uma partida beneficente do Flamengo contra o Benfica, no Maracanã, naquele mesmo ano. João Batista de Sales, o Fio, começou no banco e, ao entrar, marcou um golaço que arrancou aplausos da torcida e dos companheiros. Jorge, presente nas arquibancadas, eternizou o momento em uma das canções mais icônicas de sua carreira. A música não apenas narra o gol, ela o transforma em lampejo:
“Foi um gol de anjo / Um verdadeiro gol de placa.”
O sucesso foi imenso, mas também trouxe complicações. Em 1973, Fio processou Jorge Ben por uso indevido de seu nome, alegando que a canção gerava lucro sem autorização. Em resposta, Jorge regravou a música com o título “Filho Maravilha”, trocando o próprio nome, mas mantendo o conteúdo lírico praticamente intacto. Apesar da confusão judicial, a música original continuou viva na memória popular.
Hoje, “Fio Maravilha” é considerada uma das maiores fusões entre futebol e música brasileira. Foi tema de reportagens, inspirou peças teatrais e segue como referência obrigatória para quem estuda a interseção entre cultura e esporte no Brasil. O próprio Fio, anos depois, declarou que se reconciliou com a homenagem, mostrando que, no final, a arte foi mais longe que a disputa.
Zagueiro: O herói invisível
Em 1975, Jorge lançou “Zagueiro” no álbum A Banda do Zé Pretinho. A canção é um samba leve, quase cômico, mas cheio de observações sutis sobre a estrutura emocional do jogo. Ao homenagear o defensor, Jorge faz um gesto inédito: dá voz à figura geralmente esquecida, eclipsada pelos atacantes. “É o anjo da guarda da defesa / Mas para ser um bom zagueiro não pode ser sentimental”, canta ele, num tributo aos heróis anônimos da linha de trás.
A letra humaniza o zagueiro, figura tradicionalmente associada à força e à dureza, mas que aqui aparece como trabalhador, resiliente e digno. A escolha de Jorge mostra seu olhar diferenciado sobre o futebol. Em vez de glorificar apenas os gols e os craques, ele presta atenção ao que está fora dos holofotes. O zagueiro vira símbolo do esforço invisível que sustenta o time, mas raramente ganha manchetes.
Essa valorização do personagem secundário é um ato de justiça poética. Em tempos de glorificação dos artilheiros, Jorge lembrou que há beleza também no carrinho preciso, na cobertura salvadora, no suor anônimo.
A força negra em campo: Umbabarauma e identidade
Em 1976, Jorge lançou África Brasil, uma virada estética em sua carreira, marcada pela introdução de guitarras elétricas e forte influência afro-funk. E ali, no meio das faixas poderosas, surgiu “Ponta de Lança Africano (Umbabarauma)”, uma canção que transcende o futebol. Trata-se de um canto ao jogador negro da várzea, símbolo de resistência e orgulho da periferia:
“Umbabarauma, homem-gol, jogava na seleção / Mas era da várzea, da favela, do povão.”
Com uma batida tribal e uma melodia hipnótica, a música se tornou um hino da identidade negra no esporte. Não é apenas uma canção sobre um atacante, é um retrato de corpo em movimento, de potência física e simbólica. Umbabarauma é mais que um personagem: é um arquétipo. Representa todos os que, jogando descalços nos campinhos de terra, sonham em alcançar os gramados iluminados dos grandes estádios.
Décadas depois, “Umbabarauma” seria redescoberta por DJs europeus e americanos, remixada e incorporada ao circuito da música eletrônica. Voltaria às pistas como hino underground, dançado por jovens que talvez nunca tenham ouvido falar de várzea, mas que sentiram a força do groove. Jorge, mais uma vez, transformou um canto local em expressão global e fez a bola rolar em outros campos.
Ídolos imortalizados
Jorge Ben também foi responsável por eternizar em canções alguns dos maiores ídolos do futebol brasileiro. Em “Camisa 10 da Gávea”, ele canta a genialidade de Zico, o Galinho de Quintino, ícone do Flamengo e referência técnica de uma geração. Embora a música não tenha alcançado o mesmo sucesso de outras homenagens, carrega a devoção sincera do torcedor apaixonado que reconhece no craque algo maior do que talento: um símbolo de esperança coletiva.
Já em “O Rei Chegou”, Jorge presta tributo a Pelé, o maior de todos. A canção se apresenta quase como um cântico religioso:
“Pelé, Pelé / O rei chegou.”
É menos uma música e mais uma saudação litúrgica. Pelé, para Jorge, não é apenas um jogador, é o orixá maior dos gramados, a divindade do futebol-arte, o escolhido. A homenagem não descreve jogadas nem estatísticas, exalta a aura mítica que cercava o camisa 10 da Seleção.
O futebol como metáfora da vida
Mais do que homenagens ou retratos fiéis, o que Jorge Ben faz em sua obra é usar o futebol como metáfora para entender o Brasil. Em canções como “País Tropical”, o jogo aparece como pano de fundo para uma nação que vive entre o sonho e a precariedade. O campo vira país, o gol vira futuro. E, mesmo que às vezes a rede não balance, a esperança nunca desaparece.
Jorge compreende o futebol como linguagem corporal de um povo que precisa inventar a alegria todos os dias. Seus versos, mesmo quando não citam a bola, respiram o ritmo do jogo imprevisível, criativo, intuitivo. Assim como um drible desconcertante, suas músicas surpreendem e encantam, lembrando que beleza e arte podem nascer do acaso.
Ao fim, Jorge Ben Jor nunca precisou vestir uma camisa 10 ou calçar chuteiras para entender o jogo. Porque entendeu o essencial: tanto a música quanto o futebol são expressões máximas do sentimento. E, por isso, quando canta sobre o jogo, ele não está apenas descrevendo, está jogando com palavras. E nos fazendo, como torcedores e ouvintes, vibrar a cada verso.
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